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SP - Litoral,19/09/2024

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    Milho chegou ao Brasil pela Amazônia ocidental e foi domesticado ao longo de ondas migratórias

    Fonte: revistapesquisa.fapesp.br
    Milho chegou ao Brasil pela Amazônia ocidental e foi domesticado ao longo de ondas migratórias

    Há milhares de anos, o milho é parte fundamental da alimentação de muitas culturas indígenas das Américas. No Brasil, receitas e bebidas feitas com o cereal, como o preparado levemente alcoólico chamado de cauim pelos povos Tupi, fazem parte da dieta amazônica e são usadas em rituais. Algumas etnias indígenas brasileiras, como os Guarani Mbya, o consideram sagrado. É o grão mais produzido em escala mundial, em grande parte como alimento na pecuária e com presença notável na alimentação humana. Essa relevância faz com que arqueólogos e geneticistas hoje investiguem a origem, a dispersão e os processos de domesticação por quais o milho passou desde a origem da agricultura nas Américas.


    Novas interpretações publicadas na quarta-feira (4/9) na revista Science Advances mostraram as similaridades entre amostras arqueológicas do milho e raças cultivadas atualmente por indígenas e agricultores tradicionais brasileiros. Os autores defendem que o milho chegou há 6 mil anos no sudoeste da Amazônia, a partir de sua origem no México, 9 mil anos atrás, de forma apenas parcialmente domesticada e, depois, passou por diferentes etapas de seleção e diversificação em regiões como o Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país.


    Isso não significa que a domesticação inicial se tenha completado na Amazônia. Amostras de milho encontradas em Minas Gerais com datas entre 570 e 1010 anos antes do presente têm características compatíveis com o primeiro milho plantado nas Américas. Atualmente, existem cerca de 300 raças de milho no continente americano. Delas, 15 são brasileiras, divididas em 19 sub-raças, das quais quatro são nativas, associadas aos indígenas, e são chamadas de Entrelaçado, Caingang, Avati Moroti e Lenha.


    Os pesquisadores analisaram a morfologia e o DNA de 282 espigas fragmentadas, duas inteiras e 12 grãos de milho antigos encontrados nos anos 1990 por uma equipe do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) coordenada pelo arqueólogo francês André Prous no vale do Peruaçu, no norte do estado. A curadoria do material hoje está a cargo do engenheiro-agrônomo e geneticista Fábio de Oliveira Freitas, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, um dos autores do artigo. “É uma quantidade grande de material encontrado naqueles sítios arqueológicos, ainda mais considerando o alto potencial de degradação devido às condições tropicais do país. A preservação ocorreu porque os milhos estavam em cavernas e foram enterrados dentro de cestos”, diz a geneticista Flaviane Costa, pesquisadora em estágio de pós-doutorado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e primeira autora do artigo. Ela fez as análises no âmbito de projetos coordenados pelas geneticistas Elizabeth Ann Veasey, sua orientadora no doutorado, e Maria Imaculada Zucchi, supervisora atual.


    Flaviane Costa / USPO teosinto, como essas amostras da Universidade Harvard, corresponde à forma ancestral do milhoFlaviane Costa / USP


    Todos os exemplares tinham o que os biólogos chamam de endosperma farináceo: uma grande parte do corpo do grão, onde os nutrientes ficam armazenados, era opaca. Outras versões, mais transparentes, são classificadas como vítreas. As amostras arqueológicas foram comparadas às variantes de milho com endosperma farináceo, cultivadas atualmente por povos indígenas e agricultores tradicionais brasileiros, e com o teosinto, uma planta silvestre aparentada ao milho e considerada semelhante à sua forma ancestral. Os exemplares de teosinto estão armazenados no Museu de Arqueologia e Etnologia de Peabody, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. As informações de milho moderno foram obtidas em coleções da USP e da Universidade da República, no Uruguai.


    As amostras arqueológicas são espigas cônicas com quatro a 40 grãos em cada uma de quatro a 18 fileiras. Essa configuração tem semelhanças com o teosinto moderno, cujas espigas cilíndricas têm entre duas e oito fileiras, com número de grãos que varia entre seis e 27 em cada uma. Eles definiram, com base nesses números, que um bom parâmetro para classificar as variantes primitivas de milho, ou seja, as anteriores ou mais basais do processo de domesticação, seria um número de fileiras inferior a oito, porque nenhuma raça moderna do cereal nas chamadas terras baixas da América do Sul se enquadra nesse critério – normalmente, essas raças sul-americanas exibem cerca de 12 fileiras, mas podem chegar a até 26. Entre as amostras de teosinto, 95% tinham menos de oito fileiras.


    Fábio de Oliveira Freitas / Embrapa Milho arqueológico encontrado em Minas Gerais preserva características antigasFábio de Oliveira Freitas / Embrapa


    Os geneticistas encontraram, em meio às 282 amostras do vale do Peruaçu, 14 exemplares arqueológicos com quatro ou seis fileiras, apesar de a domesticação do cereal ter se iniciado há 9 mil anos no México e há 5 mil anos na Amazônia ocidental. “Isso é algo completamente novo”, diz o arqueólogo Tiago Hermenegildo, pesquisador em estágio de pós-doutorado no Instituto Max Planck de Geoantropologia, na Alemanha, também vinculado ao Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. Ele faz pesquisa arqueológica com milho na Amazônia, mas não participou do estudo. O traço é peculiar porque, em tese, o longo processo de domesticação, marcado pelo aumento das fileiras de grãos, deveria ter eliminado essas características.


    A novidade, ao lado de dados comparativos levantados pelos autores, indica que o milho ainda não estava completamente domesticado quando chegou ao Brasil. “O artigo é disruptivo porque, até 2018, se pensava que toda a domesticação do milho havia ocorrido no México”, afirma Costa. “Havia um imenso vazio de dados para as terras baixas da América do Sul, que são as regiões do continente abaixo de 1.500 metros de altitude.”


    Um estudo de 2018 tinha mapeado o genoma completo de diversas variedades de milho na América do Sul e verificado uma variação nos genes associados à domesticação do milho. Quando o processo está completo, espera-se que formas genéticas (alelos) que aumentam o número de grãos, por exemplo, se tornem as únicas existentes – ou fixadas, no jargão geneticista. “Agora mostramos exemplares arqueológicos de milho encontrados no Brasil com características primitivas, o que corrobora esses trabalhos anteriores”, afirma a pesquisadora da Esalq.


    Ainda não há consenso. “O que os estudos genéticos afirmam é que no início da domesticação, no México, o milho tinha uma troca de genes muito mais intensa com as variantes silvestres”, diz Hermenegildo. “Quando chega ao Brasil, essa troca já não ocorre, apesar de ainda haver fluxo gênico com outras variedades, em um processo de domesticação secundária, e isso é reforçado pelo novo trabalho.”


    Migração no continente

    O grupo de Costa também buscou traçar a rota de migração do milho no continente. Para isso, identificou similaridades entre os grupos existentes e os exemplares comparados às amostras arqueológicas de milho das raças Entrelaçado, Caingang, Avati Moroti e Lenha, além de resultados sobre as mesmas raças publicados em outros artigos. Foi assim que descobriram que exemplares locais de Entrelaçado da Amazônia ocidental se aproximavam das amostras arqueológicas encontradas no Cerrado e na Caatinga.


    Fábio de Oliveira Freitas / EmbrapaPinturas rupestres em cavernas do Peruaçu indicam que milho e buriti faziam parte da vida dos povos que habitavam a regiãoFábio de Oliveira Freitas / Embrapa


    O milho Avati Moroti está presente em várias partes do Brasil. Exemplares dessa raça encontrados no Cerrado mostraram proximidade com uma amostra da Mata Atlântica e outras descritas na literatura científica. Enquanto isso, outro subgrupo da mesma raça foi identificado mais ao Sul, na região do Pampa. Variedades locais dos milhos Caingang e Lenha também existem no Pampa e na Mata Atlântica.


    Isso tudo ajudou os pesquisadores a propor um caminho de migração do cereal. Para eles, o milho foi trazido ao Brasil por migrações à Amazônia ocidental, de onde foi levado para as regiões de Caatinga e Cerrado, no Centro-Oeste e Nordeste. Ao mesmo tempo, outras ondas de migração também transportaram o grão para as regiões de Mata Atlântica, sobretudo no Sudeste, e ao Pampa, no Sul do Brasil.


    “A comunidade científica conhece esses milhos nativos desde 1958, mas ninguém na arqueologia deu atenção até os anos recentes”, destaca Hermenegildo. “Essas evidências atuais sobre o vegetal chegaram a ser completamente ignoradas por décadas de pesquisas arqueológicas na Amazônia; o trabalho é fundamental nesse sentido.”


    Ao pôr em evidência a resiliência das características primitivas do milho, o trabalho também tem impacto para as políticas de preservação e manejo atuais. Para Costa, a presença ao longo de milênios de variedades exclusivamente sul-americanas reforça a necessidade de políticas públicas e acordos internacionais para a conservação dessas raças nativas. A falta dessas políticas pode levar ao risco de extinção das variedades locais e raças nativas que ainda existem. “O trabalho valoriza o plantio realizado por populações tradicionais e indígenas”.


    Para Hermenegildo, isso é importante porque muitos tipos de milho plantados pelos povos indígenas foram extintos junto com seus agricultores. “Foi uma verdadeira erosão cultural e genética, desde os tempos da colonização.”


    Projeto

    Genômica populacional e caracterização fenotípica para elucidar aspectos da origem, domesticação e dispersão do urucum (Bixa orellana) e milho (Zea mays) nas terras baixas da América do Sul (nº 15/26837-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora Responsável Elizabeth Ann Veasey (USP); Investimento R$ 192.720,56.


    Artigo científico

    COSTA, M. F. et al. Archaeological findings show the extent of primitive characteristics of maize in South America. Science Advances. v. 10. 4 set. 2024.




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